Vitor Hugo, Os Trabalhadores do Mar. Primeira Parte – O Sr. Clubin. Livro Primeiro – Elementos de Uma Má Reputação. Capítulo VII – Casa Embruxada, Morador Visionário. São Paulo: Nova Cultural, 2002, pp. 41-43 (Tradução de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1866).
“Capítulo VII – Casa Embruxada, Morador Visionário”
“Gilliatt era o homem do sonho. Vinham daí as suas audácias e as suas hesitações. Tinha idéias propriamente suas.
Havia talvez nele a ligação do alucinado e do iluminado. A Alucinação entra na cabeça de um campônio como Martin, do mesmo modo que na cabeça de um rei como Henrique IV. O Desconhecido faz surpresas ao espírito do homem. Rasga-se bruscamente a sombra, deixa ver o invisível; depois fecha-se. Tais visões são às vezes transfiguradoras; de um condutor de camelos faz Maomé, de uma cabreira faz Joana d’Arc. A solidão desprende uma certa quantidade de desvario sublime. É o fumo da sarça ardente. Resulta daí um misterioso estremecer de idéias: o doutor dilata-se até o vidente, o poeta até o profeta; resulta Horeb, Cédron, Ombos, a embriaguez do louro mastigado da Castália, as revelações do mês Busion; resulta Peléia em Dodona, Ffeônoe em Delfos, Trofônio em Lebadéia, Ezequiel no Kebar, Jerônimo na Tebaida. Na maior parte dos casos o estado visionário abate o homem, e o embrutece. O embrutecimento sagrado existe. O faquir carrega a sua visão, como o habitante alpino a sua papeira. Lutero falando aos diabos no celeiro de Wurtemberg, Pascal tampando o inferno com o biombo de seu gabinete, o obi negro, dialogando com o deus branco chamado Bossum, é o mesmo fenômeno diversamente produzido, segundo a força e a dimensão de cada cérebro. Lutero e Pascal são e ficam sendo grandes; o obi negro é imbecil.
Gilliatt não era tanto, nem tão pouco. Era um pensativo. Nada mais.
Contemplava a natureza de um modo singular.
Tinha visto algumas vezes, na água do mar, completamente límpida, animais inesperados, de grandes dimensões, de formas diversas, os quais, fora da água, assemelhavam-se a cristal mole, e, tornados à água, confundiam-se com ela, pela identidade de transparência e de cor; disto concluía ele que, se a água era habitada por transparências vivas, bem podia ser que o ar fosse habitado por transparências igualmente vivas. Os pássaros não são os habitantes, são os anfíbios do ar. Gilliatt não acreditava no ar deserto. Dizia ele: se o mar está cheio de criaturas, por que motivo a atmosfera será vazia? Criaturas cor do ar podem escapar aos nossos olhos por causa da luz; quem nos prova que essas criaturas não existem? A analogia indica que o ar deve ter os seus peixes, como o mar; os peixes do ar serão talvez diáfanos, benefício da providência criadora, tanto a nosso favor, como a favor deles; deixando passar a luz através da sua forma, e não fazendo sombra, ficam ignorados de nós, e nada poderemos saber. Gilliatt imaginava que, se se pudesse esvaziar a atmosfera, pescando-se no ar como num tanque, achar-se-ia uma porção de criaturas surpreendentes. E, acrescentava ele, na sua cisma, muitas coisas se explicariam.
A cisma, que é o pensamento no estado nebuloso, confina-se com o sono e preocupa-se a respeito dele, como de sua própria fronteira. O ar habitado por transparências vivas seria o começo do Desconhecido; além abre-se a vasta porta do possível. Outros seres e outros fatos. Nada sobrenatural; mas a continuação oculta da natureza infinita. Gilliatt, no ócio laborioso que compunha a sua existência, era um observador estranho e fantástico. Chegava a observar o sono. O sono está em contato com o possível, que também chamamos o inverossímel. O mundo noturno é um mundo. A noite é um universo. O organismo material humano, sobre o qual pesa uma coluna atmosférica de 15 léguas de altura, chega à noite fatigado, cai de fraqueza, deita-se, repousa; fecham-se os olhos da carne; então, naquela cabeça adormecida, menos inerte do que se crê, abrem-se outros olhos, aparece o Desconhecido. As coisas sombrias do mundo ignorado tornam-se vizinhas do homem, ou porque haja verdadeira comunicação, ou porque as distâncias do abismo tenham crescimento visionário; parece que as criaturas invisíveis do espaço vêm contemplar-nos curiosas a respeito da criatura da terra; uma criação fantasma sobe ou desce para nós, no meio de um crepúsculo; ante a nossa contemplação espectral, uma via que não é a nossa agrega-se e dissolve-se, composta de nós mesmos e de um elemento estranho; e aquele que dorme, nem completo vidente, nem completo inconsciente, entrevê as animalidades estranhas, as vegetações extraordinárias, as cores lívidas, terríveis ou risonhas, as larvas, as máscaras, os rostos, as hidras, as confusões, os luares sem lua, as obscuras decomposições do prodígio, o crescer e o decrescer no meio da espessura turvada, a flutuação de formas nas trevas, todo esse mistério que chamamos sonho, e que não é mais do que a aproximação de uma realidade invisível. O sonho é o aquário da noite.
Assim sonhava Gilliatt.”