Saturday, April 07, 2007

Shunga (Gravuras Eróticas)


(1814 circa) Katsushika Hokusai, "Pescadora Awabi e Octopus" ou "O Sonho da Mulher do Pescador", Gravura.
Não tenho como não notar a impressionante expressão compenetrada do octopus que se vê em seus olhos e nas cavidades que a provável falta de ar produzem em sua cabeça. Isso é pornografia? Acho que depende do referente. Será justo considerar pornográfico algo que pode produzir no espírito um sem-número de fantasias, onde no mais das vezes criamos todo o cenário visual, a situação é toda ela narrada dentro de nós por uma voz concupiscente , dando até nomes aos personagens da cena, tudo para aumentar ainda mais o prazer almejado. Isso parece ser muito diferente da mera sensação frictiva do contato físico tout court, sem nenhum sinal de qualquer ideação. No que será que o octopus está pensando?
Se alguém souber as referências certas dessa obra, por favor me envie como comentário aqui no Blog.

Pornografia e Erotismo


(1866) Gustave Courbet, L'Origine du Monde, Óleo s/ Tela, 46x55 cm, Musée D'Orsay, Paris.

Recomendo, para os que não conhecem, a obra acima "A Origem do Mundo", de Gustave Courbet, pintor dito realista (?) do século XIX. Nela, como todos podem ver, o artista retrata de forma bastante direta o orgão sexual feminino, sem subterfúgios ou mediações visuais, um pouco, se quiserem, como começara a fazer a fotografia. Agora uma pergunta: O que realmente incomoda numa imagem como essa? A frontalidade e evidência do sexo exposto? Se a obra fosse pintada hoje, não haveria quem não se perguntasse se isso é uma imagem erótica ou se não é, em realidade, pura pornografia. Muitos, aposto que a maioria, diriam que é simplesmente uma imagem pornô. Depois que o observador descobrisse que se diz do pintor pertencer ao "filo" realista, não haveriam mais dúvidas... Mas é justamente aí onde reside, aos meus olhos, o verdadeiro incômodo da obra. O que significa dizer que Courbet era um pintor "realista"? O que uma classificação taxonômica como essa, fundada numa falsa idéia de um naturalismo intrínseco à toda forma artística, revela da obra? Que a imagem é clara e direta, como disse acima? Ora, não foi preciso esperar Freud criar a Psicanálise com sua Interpretação dos Sonhos para que pudéssemos dizer, com total "conhecimento de causa", que existe uma diferença entre um conteúdo manifesto e outro latente nos produtos do espírito humano. Freud não criou essa distinção do nada, como se antes dele todas as obras, particularmente as de cunho artístico, não significassem mais do que a sua pura existência material. Pelo contrário. Foi só depois dele que a idéia da pura materialidade como sinônimo das obras de arte passou a existir, justamente por Freud ter explicitado uma diferença que antes era tácita, porém subjacente à produção artística de todos os tempos.
Voltando à minha pergunta central: o que produz incômodo na pintura de Courbet? Não há como sustentar uma filiação como a que subscreve Courbet dentro de um gênero realista se confrontamos aquilo que mostra a pura visualidade do quadro em questão com o próprio título que a ele confere o artista, título que é, como todo o quadro, uma porta de abertura para se pensar minimamente, sem qualquer outra informação adicional, sobre a idéia que o pintor tinha em mente quando retratou de forma "tão realista" a origem do mundo... Nesse caso, vale a pena se questionar também em que medida a obra em questão chega, na cabeça do pintor, a ser considerada uma obra permeada de um certo "erotismo". Que erotismo é esse? É um erotismo sensual, que recorre mais aos efeitos produzidos nos nossos sentidos do que à nossa capacidade de chegar a um significado para a obra que é construído mediante o uso necessário das regras da razão? Não deveria ser a obra inserida dentro de um debate que contrapõe, de um lado, uma teogonia, e de outro, uma antropogonia carregada de uma certa dessacralização do mundo? E se pensamos que a obra possui esse tom laico fundamental, isso não a aproximaria de uma certa idéia um tanto corrente de que a pornografia é, antes de mais nada, a "ausência de um sentido mais profundo"? Seria então a pintura de Courbet, no final das contas e paradoxalmente, uma obra pornográfica? Acho que seria pedir um pouco demais de uma obra pornográfica que produza todo esse caminho de idéias, sem falsa modéstia.
Um caso similar ao da obra de Courbet são algumas pinturas de Hokusai mais ou menos do mesmo período que retratam uma famosa lenda oriental na qual uma garota, cuja ocupação era coletar pérolas de dentro das conchas no mar, é "seduzida" por um polvo e seus tentáculos, que se grudam na moça enquanto o octopus a suga com volúpia ardente. Esse tipo de obra, chamado no período de "shunga", era na verdade bastante comum desde o século XVII, fazendo parte de um grupo junto com outros artefatos (como os netsuke, pequenas esculturas que serviam como uma espécie de fivela) que representavam uma prática aparentemente real das moças de olhos puxados. Van Gogh adorava as obras que conhecia de Hokusai, tendo inclusive feito em algumas de suas pinturas citações diretas das mesmas. Em Hokusai como em Courbet tanto o erótico quanto o pornográfico envolvem a questão da sensualidade/sexualidade; contudo, a diferença está no tratamento dado por cada "técnica". Enquanto o pornográfico só se interessa por apresentar diretamente, sem subterfúgios ou jogos de linguagem, esse objeto, já o erótico utiliza o mesmo objeto só que introduz nele sentidos outros, que não são necessariamente veiculados por uma ocultação do orgão. O que é direto ou indireto é o sentido ou sentidos atribuído(s) ao objeto, e não o objeto em si. A frontalidade do quadro de Courbet nada mais é do que uma provocação, não apenas aos sentidos, mas à razão, à nossa pressa em tirar conclusões precipitadas sobre imagens que falam mais quanto mais são deixadas entrever-se no silêncio de suas sugestões.
Pornografia por si mesma não é arte, segundo o meu entender, pois não eleva o objeto retratado de sua mera condição de objeto. Quando Duchamp põe um mictório numa exposição, ou uma roda de bicicleta, ele está transformando a condição de mero objeto do mictório em algo diverso, capaz de gerar associações e sentidos diversos daqueles que o mesmo objeto teria se estivesse simplesmente num banheiro público. Como bem sabe Courbet, sua Origem do Mundo faz pensar. Ainda mais quando Eros não se deixa entrever claramente pela Alma...
Para o Jorge...