Saturday, October 27, 2007

"Vermelhura da Manhã" (Exercício de Tradução)

Como eu já disse em outra ocasião, infelizmente eu ainda não sei ler em alemão. No entanto, isso não me impede de tirar uma conclusão que parece ser razoável da comparação de duas traduções diferentes para a mesma obra cujo original está na língua de Göethe. Falo de duas traduções de MORGENRÖTE, De Nietzsche. Tudo bem que o título em português, Aurora, é mais bonito do que em inglês, Daybreak. Mas acompanhem comigo as duas traduções que cito abaixo do mesmo aforismo, o de número 539:
Primeiro em português, na tradução de Paulo César de Souza para a Cia das Letras (2004):
"Vocês sabem o que querem? - Nunca os torturou o medo de ser completamente inaptos para reconhecer o que é verdadeiro? O medo de seu tino ser muito obtuso, de mesmo a sensibilidade da visão ainda ser muito grosseira? Se (sic) notarem que tipo de vontade governa por trás de sua visão? Por exemplo, como ontem queriam ver mais que um outro, hoje querem ver diferente do outro, ou como já no princípio anseiam achar uma confirmação, ou o oposto daquilo que até o momento acreditou-se achar! Oh, vergonhosos desejos! Como vocês freqüentemente buscam o que o (sic) produz efeito forte e o que tranqüiliza - porque estão cansados! Sempre com ocultas predeterminações de como deveria ser a verdade, para que vocês pudessem aceitá-la! Ou acreditam que hoje, quando estão gelados e secos como uma clara manhã de inverno e nada lhes ocupa o coração, teriam uma visão melhor? Não se requer calor e entusiasmo para fazer justiça a uma coisa do pensamento? - e justamente isso é ver! Como se vocês pudessem tratar as coisas do pensamento de forma diferente da como lidam com pessoas! Nesse trato há a mesma moralidade, a mesma probidade, as mesmas segundas intenções, a mesma frouxidão, o mesmo temor - o seu amável e odioso Eu! Seus cansaços físicos darão cores cansadas às coisas, suas febres os tornarão monstros! Sua manhã não ilumina as coisas de forma diferente de sua tarde? Não temem reencontrar, na caverna de todo conhecimento, o seu próprio fantasma, como uma trama de que a verdade se mascarou perante vocês? Não é uma horrível comédia, esta na qual querem irrefletidamente representar um papel? -"
A mim me soa tão obtusa essa tradução, tão desconjuntada, a ponto de eu não saber, na frase seguinte, o que eu li na frase anterior. Vejam agora a tradução para o inglês de R. J. Hollingdale para a edição da Cambridge University Press (1997):
"Do you know what you want? - Have you never been plagued by the fear that you might be completely incapable of knowing the truth? The fear that your mind may be too dull and even your subtle faculty of seeing still much too coarse? Have you not noticed what kind of will rules behind your seeing? For example, how yesterday you wanted to see more than another, today differently from another, or how from the very first you longed to find what others fancied they had found or the opposite of that! Oh shameful craving! How you sometimes looked for something which affected you strongly, sometimes for what soothed you - because you happened to be tired! Always full of secret predeterminations of how truth would have to be constituted if you would consent to accept it! Or do you believe that today, since you are frozen and dry like a bright morning in winter and have nothing weighing on your heart, your eyes have somehow improved? Are warmth and enthusiasm not needed if a thing of thought is to have justice done to it? - and that precisely is seeing! As thought you were able to traffic with things of thought any differently from the way you do with men! In this traffic too there is the same morality, the same honourableness, the same reservations, the same slackness, the same timidity - your whole lovable and hateful ego! When you are physically tired you will bestow on things a pale and tired coloration, when you are feverish you will turn them into monsters! Does your morning not shine upon things differently from your evening? Do you not fear to re-encounter in the cave of every kind of knowledge your own ghost - the ghost which is the veil behind which truth has hidden itself from you? It is not a horrible comedy in which you so thoughtlessly want to play a role? -"
Sem querer conhecer melhor o texto original de Nietzsche e o(s) sentido(s) preciso(s) dos termos que ele usa em alemão, dá, por outro lado, para tentar fazer uma tradução improvisada para o português sem incorrer em alguns erros estilísticos. Vejam o resultado:

Tu sabes o que queres? – Acaso tu nunca foste acometido pelo medo de poder ser completamente incapaz de saber a verdade? Pelo medo de que tua mente seja por demais lesada e ainda que tua sutil capacidade de visão seja ainda muitíssimo tosca? Acaso não percebeste que tipo de vontade governa por detrás de tua visão? Por exemplo, como ontem tu quis ver mais que outrem, hoje diferentemente de outrem, ou como desde o princípio tu procuraste encontrar aquilo que os outros fantasiavam terem encontrado ou mesmo o oposto disso! Ó vergonhosa concupiscência! Como tu às vezes procuraste por algo que te afetasse fortemente, às vezes por aquilo que te tranqüilizasse – porque tu estavas cansado! Sempre cheio de predeterminações secretas de como a verdade deveria ser constituída se tu consentisse em aceitá-la! Ou acaso acreditas que hoje, já que estás congelado e seco como uma manhã luminosa no inverno e não tem nada pesando no seu coração, teus olhos de alguma forma melhoraram? Acaso o calor e o entusiasmo não são necessários para se fazer justiça a uma coisa do pensamento? – e isso é, precisamente, ver! Como se tu fosses capaz de lidar com coisas do pensamento de alguma forma diversa da forma com que tu lidas com os homens! Também nesta relação existe a mesma moralidade, a mesma honorabilidade, as mesmas reservas, a mesma frouxidão, a mesma timidez – teu inteiro, amável e odioso Eu! Quando tu estás fisicamente cansado tu irás transferir às coisas uma coloração pálida e opaca; quando tu estiveres febril tu irás transformá-las em monstros! Acaso a tua manhã não brilha sobre as coisas de forma diversa da forma como brilha a tua tarde? Acaso não temes re-encontrar na caverna de todo tipo de conhecimento o teu próprio fantasma – o fantasma que é o véu atrás do qual a verdade se escondeu de ti? Acaso não é em uma terrível comédia onde tu queres tão irrefletidamente desempenhar um papel? –