Wednesday, October 25, 2006

O Caráter Tépido da Alma


(1475-78) Antonello da Messina (1430-1479), O Cristo Morto Carregado Pelo Anjo, Madeira, 74x51cm, Prado Madrid.
Dedico este belo quadro de Antonello à Paula, que em breve poderá vê-lo ao vivo e à cores em Madrid.
Penso que nele o pintor reuniu 3 elementos que me chamam a atenção por contribuirem na formação de uma visão muito particular e nova para a época no que se refere ao significado da dor e do sofrimento, dentro de um quadro de superação dos mesmos. O primeiro elemento é iconográfico: o artista inova aqui ao representar em uma imagem sacra a parte superior dos pêlos pubianos do Cristo, fator que retira a representação e o próprio significado do episódio de um contexto absolutamente intangível e transcendente, para reinstaurá-lo dentro de um contexto palpável, sensível ao próprio toque do espectador que agora encontra no Messias um igual, não só Deus, mas um Homem como todos nós. Não se trata, no caso da exibição do púbis, de uma tentativa de trazer ao personagem uma implicação sexual, mas de ressaltar a carnalidade sensível do mesmo. Esse primeiro elemento está ligado ao segundo, de caráter plástico, pois além do púbis, Antonello representa com enorme nítidez, vivacidade e realismo todo o corpo do Cristo, cuja unidade é formada aqui pela miríade dos seus pequenos detalhes individuais e particulares, como os pêlos da perna, as veias aparentes no braço direito torcido, o sangue que escorre em filetes ou em gotas, a barba e os cabelos, cujos fios são todos pensados isoladamente uns dos outros, a marca das costelas e assim sucessivamente. A reunião destes dois elementos, o iconográfico com o tratamento plástico dado às superfícies, fornece elementos para que possamos entender um terceiro elemento não de todo evidente, que se refere ao caráter expressivo da composição. Se a expressão do Anjo é um pouco mais evidente, ou seja, se nos sentimos seguros ao afirmar que o Anjo realmente chora a morte do Messias, por outro lado, quanto à expressão do próprio Cristo sentimo-nos atraídos pela forma em que Antonello a situa numa posição intermédia, de passagem, ou seja, dentro de uma ambiguidade que possibilita a aglutinação da experiência profunda da dor e do sofrimento ao mesmo tempo em que confere à essa mesma dor e sofrimento um caráter de superação, de verdadeiro êxtase religioso pelo qual a essência humana do Cristo antes observada pode vir a coexistir com a sua essência divina - e isso dentro de uma paisagem cujos elementos, em particular a caveira maior ao lado esquerdo e as outras inúmeras caveiras menores no fundo mais próximo, recordam ao fiel mais uma vez de seu caráter humano. Nesse mesmo sentido, ainda que a expressão do Anjo seja clara, Antonello situa-o também numa posição intermédia, pois as lágrimas são uma característica de nossa humanidade, e não do espírito em sua forma pura.
No fundo, é como se a própria visualidade especialmente realista, "mundana" e sensível da representação nos conduzisse, como numa verdadeira experiência mística, à uma realidade não aparente, invisível, tendo a carne sido transubstanciada em puro espírito - coisa, pelo menos a meu entender, verdadeiramente admirável para um artista produzir.
Fico pensando no quanto de mais pura e cristalina metafísica um quadro desse não possui...

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